Relatos da “década perdida” relembram os riscos de país endividado, dependente e sem foco no desenvolvimento social
O Brasil vivia uma segunda-feira atípica, em 3 de março de 1986, primeiro dia útil de implementação de uma das várias tentativas de conter a inflação galopante do período. Em estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços de todo o país, uma multidão de consumidores e consumidoras verificava se os preços tabelados, anunciados pelo governo de José Sarney como parte das medidas do Plano Cruzado, estavam sendo obedecidos.
Teve confusão. Proprietários, gerentes e funcionários foram presos por burlar a norma. Em diversas cidades houve tumulto, ameaças e depredação e mesmo a polícia não conseguia atender a todos os chamados. No Rio de Janeiro, que registrou mais de 5 mil denúncias em um único dia, uma delegacia foi tomada por um grupo de consumidores levando produtos etiquetados com preços fora do determinado.
Em Belo Horizonte, quase 100 lojas foram autuadas e houve registro de uma funcionária que ameaçou uma cliente com uma faca ao ser surpreendida remarcando os valores nas prateleiras. Em São Paulo, 50 estabelecimentos foram autuados em uma manhã. No Recife, agentes da Polícia Federal precisaram conter uma multidão que tentou invadir e depredar um supermercado denunciado.
Os ânimos exaltados se justificavam. Na ocasião, o Brasil convivia com a constante alta nos preços há mais de uma década. Entre o início e o fim dos anos 1970 a média da inflação no país foi de 34%.
Esse índice, que pode até parecer aceitável para uma economia em desenvolvimento, estava na raiz dos momentos futuros de quase colapso. O país passaria a conviver com tensões sociais espontâneas, revoltas, saques, aumento da mortalidade infantil e da desnutrição da população em geral, potencialização da fome, da desigualdade e da carestia.
Também seguindo a crise, hábitos de consumo se alteravam. A estocagem de produtos básicos era comum, a carne era escassa e cara e, nos primeiros dias úteis do mês, supermercados eram tomados por multidões apressadas para conseguir fazer compras essenciais antes que os preços aumentassem.
Os estoques e a comida
Com a economia pressionada pela imensa dívida externa e pela dependência do dinheiro estrangeiro, o Brasil chegou aos anos 1980 à beira de um precipício. No fim de 1979, o governo militar resolveu forçar a desvalorização da moeda da época e aumentou os incentivos para exportações, para melhorar o déficit em conta corrente.
Em outras palavras, a ditadura considerou que a melhor maneira de enfrentar o desajuste nas contas era tirar o poder de compra da população e incentivar a produção para o exterior e não para o abastecimento interno.
O resultado veio a galope. Em 1980, a inflação no Brasil chegou ao patamar histórico e, até então recorde, de 100%. A economia viveu períodos de recessão e desaceleração contínuos, o desemprego era alto, os salários se desvalorizavam rapidamente e o aperto monetário interferia em todos os aspectos do cotidiano social brasileiros.
Maior símbolo do período, a estocagem de alimentos virou padrão de consumo. As compras eram feitas para durar um mês ou mais. Quem tinha mais condições, adquiria congeladores de grande porte para guardar carne. Quem não tinha, diminuía o consumo consistentemente ou ficava sem.
A pós graduanda em Segurança Alimentar e Nutricional, Vanessa Jales, tem 42 anos e lembra que na infância a despensa tinha o básico e os produtos precisavam durar. Ela vem de uma família de seis irmãos, que vive desde aquela época no Jardim Eliane, periferia de São Paulo (SP).
“É um turbilhão de lembranças, nós passamos uma época de muita dificuldade. Meu pai, quando fazia compra, trazia para um ou dois meses. Nós tínhamos que correr para comprar, porque sempre tinha alteração de preço. Comprávamos de manhã correndo porque a tarde teria aumento.”
Hoje, Vanessa ainda vive no mesmo bairro e nota que, após um período de melhorias, a rotina de compras começa a se assemelhar ao que ela vivenciou na década de 1980, com algumas peculiaridades. No passado, o básico era composto por arroz, feijão, as proteínas animais que estavam em preço acessível no momento – mesmo que escassas – e a feira de verduras e legumes.
Ela conta que nota uma mudança até mesmo nos marcadores sociais da vizinhança por causa dos preços cada vez mais altos dos produtos in natura. “Na minha época de infância, todo domingo se fazia feira. Recentemente, fui saber que os vizinhos ficavam observando o horário que as famílias iam fazer a compra, porque quem ia mais tarde não tinha situação boa. Hoje, fazer feira é muita tristeza, porque eu tento resgatar, mas não dá. Não estamos conseguindo suprir itens básicos. Compramos ovo, salsicha, o frango bem menos, mas a carne, nem pensar. De quinze em quinze dias nós fazíamos compra de carne, agora não dá mais. Hoje, passo metade das compras no débito e metade no crédito.”
O professor de Yoga, James Eduardo Kienen, de 45 anos, morador de Blumenau (SC) também nota uma mudança drástica na qualidade da alimentação atualmente, que traz lembranças do aperto vivido nos anos 1980.
“Se nos anos 80, a gente comprava o freezer para guardar a carne, aquela carne era de qualidade, a gente comprava alimentos com uma determinada qualidade. Hoje em dia, a opção no mercado é as pessoas escolherem o produto pelo preço, mesmo sabendo que a qualidade não é a mesma. Isso assusta, porque, além de interferir completamente nos hábitos, interfere também na saúde das pessoas. Vai desencadeando outros problemas que em breve muita gente vai ter, impulsionados pelos hábitos alimentares dos últimos tempos.”
O freezer ao qual James se refere ficava na casa dos avós e está marcado na lembrança dele. “Por conta da alta do valor do início para o fim do mês eles tiveram que fazer isso. Me assustou muito, ver um freezer cheio de carne e frango. Junto com isso, houve o hábito de as pessoas se juntarem para comprar uma parte de um boi. Essa peça inteira era compartilhada com os vizinhos e parentes próximos. Quem não comprava freezer, participava da compra coletiva da carne.”
A fome e a carestia
Mesmo que parte da população brasileira tenha encontrado meios para sobreviver e manter o consumo básico durante o período de inflação galopante, a realidade para uma multidão era de extrema pobreza. Embora, a ditadura militar tenha evitado a produção e divulgação de pesquisas que quantificassem o tamanho da fome, havia sinais explícitos de que o problema tinha chegado a patamares altos.
O historiador e professor Daniel Horta Alvin é autor de uma tese de doutorado que analisa as mobilizações contra a fome no Brasil entre 1978 e 1988. Na pesquisa, ele menciona que estudiosos e estudiosas da época reconheciam a escassez e a imprecisão de dados, mas a expansão da fome dava sinais por todo o tecido social.
Dados do IBGE, coletados nos anos de 1974 e 1975, apontavam que 67% da população brasileira passava fome. Em 1983, o documento Genocídio no Nordeste estimava a morte de 700 mil pessoas na região por causa da falta de comida. A carestia impulsionava a organização de movimentos populares, mas também fazia crescer reações desesperadas entre as famílias.
“(Ao longo da pesquisa), encontrei um acontecimento muito duro em São Paulo, uma notícia que falava que 2.500 pessoas, às sete horas da manhã, fizeram uma passeata na região de Santo Amaro, organizada pelo movimento Custo de Vida, em 1983. No dia 4 de abril, essas 2.500 pessoas estavam na rua e, de repente, uma parte delas se irrompe, sai em busca de alimentos nos supermercados locais e saqueia os supermercados. Isso foi tão impactante, que, no dia seguinte, o governador de São Paulo, André Franco Montoro faz um pronunciamento. Em seguida, o presidente João Figueiredo também foi a TV falar sobre o caso.”
Os saques na capital paulista deram início a uma série de atos semelhantes.
“Só em São Paulo, em um dia, você tem 32 saques a supermercados. Depois tem uma série de saques no Rio de Janeiro. Fui estudar o Nordeste e descobri que era uma prática desde as décadas de 1940 e 1950 e que, no final da década de 1970 e início da década de 1980, aumentou muito. Milhares de pessoas indo para os centros de capitais como Fortaleza, João Pessoa pedindo, tentando conseguir comida. Em 1983, você tem centenas de saques. Qual era o tamanho dessa fome que levou o Brasil inteiro, em 1983, de Norte a Sul, a saquear supermercados?”
A exclusão e a falta de rumo
Nesse cenário de preços altíssimos sempre crescentes e economia paralisada, as ações do poder público falharam em não atacar problemas centrais. O controle da inflação foi colocado na conta de medidas que deixavam de lado a solução de questões sociais históricas e miravam na austeridade.
Em 1989, a inflação anual foi de quase 2.000%. Foram cinco planos econômicos que fracassaram para conter a super inflação do período. As medidas incluíam congelamento de salários e preços, mudanças de moeda e até o traumático confisco da poupança, tentativas de segurar a demanda, que não solucionavam o problema da oferta.
O economista Daniel Negreiros Conceição, da UFRJ, explica que a visão aplicada pelo governo repete um diagnóstico comum e equivocado , “A explicação normal é de que é sempre um problema de demanda demais e demanda demais é sempre um problema de dinheiro demais sendo criado pelo governo. Nunca é isso. Na verdade, os processos inflacionários são, normalmente, associados a custos. É pelo lado da oferta que nós estamos sofrendo essa pressão. São custos que aumentam por algum motivo e produzem choques inflacionários.”
Ele explica que, naquela época, o Brasil sofria pressão intensa dos custos do petróleo e do próprio dólar. O professor dá um exemplo curioso de como a solução para o problema deve passar por investimentos, um caminho encontrado pela própria ditadura para driblar a falta de combustíveis fósseis.
“O engraçado é que, até graças um pouco à industrialização que exigiu um endividamento externo e nos expôs a essa vulnerabilidade cambial maior, mesmo o choque pelo lado produtivo, nós estávamos começando a ser capazes de lidar melhor. Quando houve o choque do petróleo, rapidamente, uma economia até limitada tecnologicamente, deu uma solução fantástica que era o Programa Nacional do Álcool (Proálcool). Naquele mesmo período, conseguimos, aos trancos e barrancos, substituir um item que estava ficando muito caro.”
No entanto, o governo não conseguiu controlar o câmbio, por conta do endividamento externo que não era parte apenas da realidade do estado, mas também atingia consistentemente a iniciativa privada. Os investimentos no Brasil dependeram do dinheiro estrangeiro durante toda a ditadura militar. O governo tentava segurar a variação, mas colocava em prática desvalorizações cambiais que provocavam um efeito dominó na economia.
“O que acaba acontecendo é que você tem perdas inflacionárias de grupos diferentes, que começam a reagir aumentando os preços que determinam suas rendas. Isso acabou validado pela política governamental, porque o processo de criação de moeda bancária se tornou absolutamente atrelado a isso, de modo que em nenhum lugar havia um freio para a indexação se transformar em maior demanda. Era uma coisa comportamental, as pessoas praticavam preços crescentemente maiores porque achavam que os preços iam ficando cada vez maiores”, explica Daniel Negreiros.
A população que tinha acesso a serviços bancários ainda encontrava maneiras de contornar a perda de poder de compra. A funcionária pública Marise Maria Santos de Faria, de 57, entrou no mercado de trabalho no início da década de 1980, com o Brasil em caos econômico. Ela trabalhava em um banco em Governador Valadares (MG) e relata que trocava o salário por dólares para evitar a desvalorização do dinheiro.
“Não era para juntar dinheiro e ganhar em cima do dólar, era para o salário não acabar antes do fim do mês. Era uma coisa tão ridícula, eu lembro que eu queria um vídeo cassete e colocava um dinheiro na poupança, quando eu juntava o dinheiro, já tinha aumentado o preço. A gente ria, mas se você for parar para pensar, era uma carestia tremenda.”
Marise Maria morava com duas irmãs, o pai e a mãe. As filhas tinham emprego e ajudavam no orçamento. Mesmo assim, em determinado momento, tiveram que desistir da faculdade porque o aumento das mensalidades impossibilitou a continuidade dos estudos.
“O momento mais punk que eu lembro foi na época do BNH (Banco Nacional da Habitação). Nosso apartamento era financiado pelo BNH e as prestações foram para o triplo. Elas aumentavam e ficou todo mundo inadimplente. Meu pai quase enlouqueceu. Porque se não pagasse era rua, te tomavam a casa. Necessidade nunca passamos, mas não sobrava nada.”
Monica Eloi, de 47 anos, é administradora de empresas e também trabalhou em um banco no período de super inflação. Moradora da capital São Paulo, ela atuava como bancária no início da década de 90 e viu a transição para o plano real, que finalmente conseguiu colocar um freio no descontrole dos preços.
Antes disso, Eloi vivenciou momentos de aperto econômico com a família, seguindo o exemplo de quase toda a população brasileira. “Nós éramos muito pobres e era muito difícil ter as coisas. Era essa coisa de estocar e fazer compra do mês. Nós íamos ao mercado e contratávamos o serviço de uma kombi para trazer a compra que era pesada, porque não tínhamos carro. Fazia o carreto para trazer aquela compra gigante. Quando você voltava de outra vez já estava tudo em outro preço. Não conseguíamos nos planejar para nada.”
No dia a dia do trabalho, ela via a realidade da família multiplicada. “Eu trabalhava no caixa. Nos dias do pagamento eram enormes as filas, porque se não o dinheiro desvalorizava. Tinha que sacar o dinheiro, porque um dia sem sacar já perdia. Eu lembro das pessoas com a preocupação, com o dinheiro contado para pagar as contas, o dinheiro em sacolas. A pessoas vinham para receber, pagavam as contas e não sobrava dinheiro. Tinha uma rigidez, um medo. No Plano Collor houve um roubo institucionalizado e as pessoas tinham medo de perder o dinheiro depois disso.”
A parcela da população que mais perdia era que não tinha conta em bancos. O professor Daniel Negreiros explica que essas famílias não conseguiam maneiras de evitar as perdas do poder de compra. “Você tinha que arrumar um jeito de guardar tudo o que comprava no início do mês, porque não iria conseguir comprar no outro mês. Eu mesmo saia sempre com um pouquinho mais de dinheiro para pagar o ônibus, porque você não sabia quando ia aumentar. Até que criaram os passes de ônibus, que se tornou uma moedinha super estável.”
Tanto para o período de descontrole vivido no fim do século passado quanto para a crise atual, o economista ressalta que a solução não passa por frear todo e qualquer gasto, mas sim pelo planejamento.
“Isso vem até do gasto bem feito. Não é parar de gastar, é gastar direito. Não vem de austeridade, que é normalmente sempre a resposta. Não, vamos aumentar a resiliência da nossa economia a esses choques que estão vindo de pontos diferentes da oferta. Por exemplo, se você é um importador de alimentos, não adianta você lidar com uma inflação de alimentos fazendo a sua população morrer de fome, porque é isso que você faz quando você quer que ela compre menos comida. Isso não pode ser uma solução”, conclui.
Edição: Rodrigo Durão Coelho
Fonte: Brasil de Fato