Nova Lei Cambial irá promover a internacionalização do real?, por Júlia Leal

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O Brasil emite uma moeda periférica e que possui um baixo prêmio de liquidez, compensado pelas elevadas taxas de juros oferecidas por aqui.

por Júlia Leal

As economias periféricas emergentes estão inseridas de forma subordinada no atual sistema monetário internacional e ficam sujeitas às oscilações do apetite ao risco dos investidores estrangeiros e aos ciclos de liquidez internacional. Oferecem altas taxas de juros para compensar o baixo prêmio de liquidez de suas moedas e possuem uma taxa de câmbio muito instável, devido à volatilidade inerente dos capitais que recebem. Além disso, essas nações possuem um elevado passivo externo em comparação com os ativos externos, o que engendra um fluxo de rendas financeiras líquidas da periferia para o centro. O tipo de internacionalização que usualmente ocorre com as moedas periféricas (investimento especulativo de curto prazo) está diretamente relacionado com a forma de integração internacional dos países emissores. Nesse sentido, a maior utilização internacional dessas moedas não altera seu prêmio de liquidez e não gera maior confiança por parte dos investidores estrangeiros.

Um país só deve iniciar o processo de internacionalização de sua moeda caso seja capaz de sustentar uma posição importante nos mercados financeiros internacionais, além de ter um sistema financeiro doméstico capaz de amortecer possíveis oscilações. Os agentes não residentes demandam moedas periféricas em busca de maior rentabilidade, principalmente em períodos de menor preferência pela liquidez. Apenas o dólar americano, euro, libra e iene japonês são reconhecidos pelo FMI como moedas ‘livremente utilizáveis’, isto é, são utilizadas internacionalmente nas negociações em mercados de câmbio. Outro ponto importante é que as reservas internacionais globais são constituídas por essas quatro moedas. Em relação ao comércio internacional e transações de capital, as moedas mais utilizadas são o dólar americano e o euro, prevalecendo o uso da moeda norte-americana na precificação de commodities, emissão de dívida internacional e ações.

O Brasil emite uma moeda periférica e que possui um baixo prêmio de liquidez, compensado pelas elevadas taxas de juros oferecidas por aqui. A partir de 2003, os investidores estrangeiros passaram a procurar classes alternativas de ativos em busca de ganhos – como as moedas de mercados emergentes – aplicando em títulos denominados em moeda local e realizando negociações com a moeda em si. O Brasil foi um dos principais destinos, devido à alta liquidez oferecida nos mercados financeiro e de câmbio. Como resultado, os ativos brasileiros passaram a compor as carteiras internacionais e tornaram-se instrumentos de negociação (que envolvem principalmente ações e moedas). Porém, os movimentos na taxa de câmbio passaram a ser mais acentuados (tanto de apreciação quanto de depreciação), reflexo da maior integração da economia brasileira aos mercados financeiros internacionais.

Com a criação do Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), em junho de 2007, o real passou a ser utilizado como moeda de faturamento nas operações entre os países autorizados a operar no SML, ou seja, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Esse sistema permite que exportadores e importadores possam usar suas moedas locais para realizar operações de forma rápida e sem burocracia, reduzindo a exposição dos agentes às oscilações cambiais. Nesse sentido, dois países envolvidos em um contrato operam com suas moedas domésticas e os respectivos bancos centrais utilizam o dólar para realizar a operação de câmbio. Desta forma, o uso regional do real dentro do SML estimula a integração entre o Brasil e os países do Mercosul.

Mais recentemente, a aprovação da Lei nº 14.286/2021[1], conhecida como a Nova Lei Cambial, busca implementar mudanças no mercado de câmbio para simplificar o uso do real em transações internacionais e por agentes estrangeiros dentro do Brasil. O Banco Central e o Conselho Monetário Nacional ainda precisam definir uma regulamentação específica para a nova legislação (prevista para entrar em vigor a partir de 2023) e os prazos para que o mercado possa se adaptar. O objetivo é ampliar o mercado cambial para investidores estrangeiros e promover uma maior conversibilidade da moeda brasileira, reduzindo as restrições do mercado de câmbio e permitindo que ordens de pagamento denominadas em real sejam enviadas para o exterior, desde que uma conta em reais seja mantida no Brasil.

O ponto mais polêmico é a abertura de contas em moeda estrangeira por residentes no Brasil, que poderão manter suas reservas denominadas em outra moeda. Hoje, somente agentes autorizados detêm esse direito. Um possível desdobramento será a livre circulação de dólares na economia brasileira. Vale destacar que o real poderá ficar mais propenso a especulações, principalmente em momentos de incerteza. A taxa de câmbio brasileira já possui uma alta volatilidade, pois é impactada substancialmente pelos movimentos externos e esta nova regra possivelmente será mais um componente prejudicial ao câmbio, contribuindo também para a vulnerabilidade da economia brasileira a choques adversos. Portanto, é preciso cautela, uma vez que não há garantias de que o real se torne uma moeda forte internacionalmente e nem que seu prêmio de liquidez internacional aumentará.

Em síntese, é preciso entender qual tipo de internacionalização seria benéfico para a economia brasileira. Uma possível estratégia para promover o maior uso do real seria aumentar sua importância no comércio regional com outros países do Mercosul no âmbito do Sistema de Pagamentos em Moeda Local, favorecendo a internacionalização do real como moeda veicular relacionada ao comércio. Sob a regência da Nova Lei Cambial, dificilmente o real deixará de ser uma moeda de especulação nos mercados internacionais, pois estimular o maior uso internacional não significa que os agentes irão ter maior confiança e não garante o aumento do prêmio de liquidez. A maior confiabilidade depende de um arranjo macroeconômico doméstico favorável, ou seja, controle da inflação e taxa de câmbio estável. O cenário político também impacta as decisões dos investidores estrangeiros, pois um ambiente caracterizado por incertezas e instabilidades afasta possíveis entradas de investimento externo. Assim, o maior uso da nossa moeda deve ser uma estratégia de cooperação com uma agenda macroeconômica voltada para o crescimento doméstico. A Nova Lei Cambial visa, de fato, aumentar o uso do real no âmbito internacional, mas os desdobramentos desses novos objetivos só serão sentidos no futuro, uma vez que a nova regulação entrará em vigor apenas em 2023.

Júlia Leal – Doutoranda em Economia pela UFRJ e Pesquisadora do Finde/UFF

Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

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Fonte: Jornal GGN