O sucesso do G20 e a democracia sob criminoso ataque, por Maria Luiza Falcão Silva

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O Brasil, que pela primeira vez na história assumiu a presidência rotativa do bloco em 2024, viveu entusiasticamente o encontro.

por Maria Luiza Falcão Silva

Depois de um ano de trabalho cooperativo sob a presidência do Brasil foi realizada, em 19 e 20 de dezembro, no Rio de Janeiro, a Cúpula do Grupo dos 20 (G20). Ministros de economia e finanças e presidentes de bancos centrais de 19 países mais União Europeia e a União Africana (agrupamento com 55 membros do continente Africano) vieram ao Brasil para assinar uma declaração consensual em defesa do meio ambiente, do combate à fome e à pobreza no mundo e outros temas de relevância mundial. O bloco representa cerca de 85% do Produto Interno Bruto mundial, mais de 75% do comércio global e agrega 60% da população do planeta.

Como de praxe, o encontro de dois dias foi precedido por inúmeros grupos de trabalho temáticos preparatórios que se desenrolaram pelo ano inteiro e culminaram na cimeira onde, após infindáveis debates, ponderações e disputas de palavras, emitiu-se uma Declaração Conjunta, uma espécie de consenso para uma ação coletiva em torno de questões centrais – os países membros se comprometeram a agir, embora a declaração não seja ‘juridicamente vinculativa’.

O fato novo neste encontro foi a criação do G20 Social, sem dúvidas uma inovação importante, criada na presidência brasileira que, em 16 de novembro, encerrou seus trabalhos apresentando ao Presidente Lula um documento de 4 páginas intitulado: A Declaração Final do G20 Social.

A ideia do governo brasileiro ao criar o G20 Social foi incluir a sociedade civil nas discussões do fórum global, reunindo movimentos sociais de base histórica nacional, os grupos de engajamento, conselhos, universidades, organismos internacionais, governo, setor privado do Brasil e do exterior, dando início a debates, conversas e mesas temáticas organizadas pela sociedade civil. A ideia ganhou suporte imediato da comunidade internacional e será incorporado pela África do Sul, que exercerá a presidência do bloco em 2025. Os três eixos focos da presidência brasileira: o da sustentabilidade; o do combate à fome e à pobreza; e o da cultura foram exaustivamente discutidos pelos participantes do G 20 Social. Inúmeras sugestões foram encaminhas aos líderes mundiais. Sem dúvida foi um gol de placa.

Relembrando, a 2ª reunião de cúpula do G2O com participação de chefes de Estado e de governos ocorreu em 2009, em Londres. A Declaração Conjunta de 2009, em sintonia com o pós crise de 2008, estabeleceu como metas: restaurar a confiança, o crescimento e os empregos; reparar o sistema financeiro a fim de restaurar o crédito; fortalecer a regulação financeira para reconstruir a confiança; capitalizar e reformar as instituições financeiras internacionais para superar a crise e prevenir outras no futuro; promover o comércio e investimento globais; rejeitar o protecionismo para garantir prosperidade; e promover uma retomada do crescimento que fosse inclusiva, verde e sustentável. Talvez tenha sido a mais importante cúpula tal era a urgência de ação conjunta para salvar o capitalismo. Daí em diante foram perdendo em importância e efetividade.

A 18a, realizada em Nova Délhi, na Índia, entre 9 e 10 de setembro do ano passado, foi marcada pelo embate em torno da guerra da Ucrânia entre os Estados Unidos e os países da OTAN de um lado, e a Rússia e aliados, inclusive a China, do outro. A China não compareceu, provavelmente por conta do aumento das tensões com o país anfitrião em disputas na fronteira. O presidente da Rússia também não foi para não correr o risco de ser preso. Tratar da guerra no âmbito da reunião foi um desafio, quase um pesadelo. Outro tema abordado na Cúpula da Índia, cercado por impasses e controvérsias, foi a questão climática e a proposta de limitação do uso de combustíveis fósseis como forma de se contrapor ao aquecimento global. Temas muito sensíveis.

A Declaração Conjunta da 18ª Cúpula quase não se materializou. As divisões no bloco das maiores economias do mundo ficaram bastante explícitas e o encontro encerrou com uma certa sensação de fracasso. Os Estados Unidos tentaram todo o tempo compor com a Índia, estratégia para conter a aliança entre Pequim e Moscou que se fortaleceu com a guerra no leste europeu.

No mês posterior à Cimeira de Nova Délhi, em 7 de outubro de 2023, o ataque homicida do Hamas a uma concorrida festa rave, em Israel, deixou centenas de mortos e o mundo transtornado. Estourou a guerra de massacre entre Israel e Palestina, mudando o foco das atenções do leste europeu para o oriente médio.

O Brasil, que pela primeira vez na história assumiu a presidência rotativa do bloco em 2024, viveu entusiasticamente o encontro. Foram decretados dois dias de feriados,18 e 19 de novembro na cidade-sede da Cúpula, o Rio de Janeiro, que se somaram aos dois dias do final de semana e à quinta-feira, feriado nacional que celebra o Dia da Consciência Negra. O clima era de total euforia. A presença de tantos chefes de Estado circulando pela cidade, muitas vezes lado a lado com a população local, conferiram ao final de semana prolongado, um clima de superação do “complexo de vira-lata”. O Brasil, finalmente, no comando da economia global. A 19a Cúpula do G20 tornar-se-á uma cúpula histórica. A mais importante desde a de 2008 quando parecia que o capitalismo daria seus últimos suspiros.

Havia uma imensa preocupação em não repetir o que ocorreu na Cúpula da Índia em Délhi. A conjuntura global era diferente, muito pior. Agravaram-se tanto o conflito do leste europeu quanto o do oriente médio. A Cúpula do Grupo dos 20 teria um membro a mais, a União Africana com toda a complexidade que isso representava. A Rússia não seria representada pelo seu chefe maior, Vladimir Putin, pelas mesmas razões pelas quais não havia comparecido à do ano passado em Nova Délhi: possibilidade de prisão.

Precedendo a Cúpula do G 20 ocorreu, no final de outubro de 2024, em Kazan, na Rússia, a Cúpula do BRICS +. Associaram-se ao grupo inicial – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – os Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia, Arábia Saudita e Irã desde a cúpula de Johanesburgo, em agosto de 2023. O encontro foi visto como uma grande oportunidade para o presidente russo, Vladimir Putin, mostrar ao mundo que não estava isolado, não era ‘carta fora do baralho’ na geopolítica mundial. Posou de anfitrião ao lado de outros líderes do Sul Global, tendo como parceiro principal a ‘gigante’ China. Insuflou a controvérsia sobre substituir o dólar norte-americano como moeda internacional que tanto desperta a ira dos Estado Unidos. O presidente Lula, que havia se acidentado, participou do encontro de forma remota, sendo ainda prejudicado pelas diferenças de fusos horários. Seu papel na reunião foi marginal. Novos países se agregaram ao coletivo na Cúpula da Rússia, sem status de membros efetivos: Turquia, Indonésia, Argélia, Belarus, Cuba, Bolívia, Malásia, Uzbequistão, Cazaquistão, Tailândia, Vietnã, Nigéria e Uganda. A Venezuela e a Nicarágua não foram aceitas por entraves com o governo brasileiro, o que pode nos custar problemas futuros não só no fortalecimento da América Latina, como no posicionamento do continente sul-americano na formação de um mundo multipolar, que só terá sucesso a partir da união dos países do Sul Global.

Há mais uma peça no jogo político e econômico. O encontro do G20 no Brasil ocorreu após as eleições presidenciais nos Estados Unidos, em novembro de 2024, que levou Donald Trump e Elon Musk ao poder, numa clara ampliação da direita extrema no quadro político internacional. Houve, também, eleições municipais no Brasil, corroborando essa tendência de retrocesso das forças progressistas no País e no mundo.

O presidente Lula já havia antecipado na Índia, em setembro de 2023, e depois na Convenção das Partes das Nações Unidas sobre mudanças climáticas (COP 28) nos Emirados Árabes Unidos, que daria na presidência do Brasil do G20, a centralidade a quatro tópicos que também estão no cerne do seu terceiro governo: i. inclusão social e combate à fome, à pobreza e à desigualdade; ii. desenvolvimento sustentável e combate às mudanças climáticas; iii. promoção da reforma das instituições de governança global, com ênfase especial no Conselho de Segurança da ONU, na direção de maior adequação à atual geopolítica mundial e iv. taxação dos mais ricos. Antecipou, também, sua disposição de convocar para a Cúpula do G20, enquanto país hospedeiro, Angola, Egito, Nigéria, Espanha, Portugal, Noruega, Emirados Árabes Unidos e Singapura. Assim foi feito e a Cúpula foi um sucesso.

Trump tentou aviltar a Cúpula mandando Javier Milei, mas não teve sucesso. O presidente argentino curvou-se à sagacidade do presidente Lula. A Declaração Final saiu, de forma consensual, e a tradicional ‘foto de família’, inicialmente sem o Biden, foi refeita, mas, desta vez sem o Milei. Nesses encontros, as fotografias e as fisionomias dos participantes falam mais do que mil palavras. Todos muito risonhos. O G20 foi um sucesso.

Foi nesse clima de êxtase coletivo, com a presença de cerca de 82 líderes mundiais no País, que assistimos estupefatos pela televisão, à explosão do homem-bomba, que atentou contra o Supremo Tribunal Federal, e à prisão do General Mario Fernandes e de um bando de comparsas, unidos pelo plano hediondo de promover um Golpe de Estado no Brasil, com detalhes de como seriam assassinatos o presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva, o vice presidente, Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes.

Fomos surpreendidos, mais uma vez, nessa quinta-feira (21), logo após o encerramento do G20, com a decisão da Polícia Federal de indiciar o ex-presidente Bolsonaro e mais de 30 autoridades, inclusive militares de altas patentes que compõem o seu entorno, demonstrando que, pelo menos dessa vez, a democracia brasileira não sucumbirá. Não ficarão impunes os mandantes, articuladores, executores, criminosos que atentam contra as pessoas, as instituições e o Estado Democrático de Direito. Em 2025, a expectativa da Nação é de que todos serão condenados e presos.

Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.

FONTE: JORNAL GGN