Arcabouço fiscal cria dilema para Lula e ameaça recursos para saúde e educação

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Nova regra sobre gastos é incompatível, no longo prazo, com reserva constitucional para gastos em áreas essenciais

A criação de um novo arcabouço fiscal (NAF) para as contas públicas federais criou um dilema político para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). As regras do NAF são incompatíveis, no longo prazo, com pisos constitucionais para investimento federal em saúde e educação. O presidente terá, portanto, que decidir se pretende alterar o arcabouço – enfrentando os defensores da política de austeridade – ou flexibilizar os pisos – comprometendo investimentos em serviços públicos essenciais.

Os políticos alinhados aos ideais do mercado pressionam o governo pela flexibilização dos pisos de saúde e educação de tal modo que eles se adequem às regras do arcabouço fiscal. Cobram do governo uma redução da dívida pública mesmo quando ela está em patamares compatíveis com a realidade econômica nacional e melhor do que a de outros países.

Do lado oposto da corda, os movimentos populares fazem força pela manutenção da regra constitucional. Temem que a flexibilização dos pisos prejudique os mais pobres, que dependem da escola pública e do atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS).

@canalgov DÍVIDA PÚBLICA | A jornalistas, Lula comparou a dívida pública brasileira com a de países como Espanha, EUA e China. “Esse país é um país muito seguro. O presidente do Banco Central tem de saber que quem perde com essa taxa de juros alta é o povo, os empresários.” #lula #divida #brasil #governo #politica ♬ som original – CanalGov

Incompatibilidade

O NAF foi proposto pelo governo Lula para substituir a regra do Teto de Gastos, criada no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB). O teto “congelou” as despesas do governo por 20 anos. Estabeleceu que, nesse período, elas só poderiam ser reajustadas pela inflação, impossibilitando assim o crescimento real dos investimentos públicos em todas as áreas.

Já o NAF vinculou o crescimento da despesa do governo ao crescimento da arrecadação com impostos. Por essa regra, quanto mais impostos o governo recebe, mais pode destinar recursos para o que julgar necessário.

O arcobouço, porém, tem uma restrição: pela regra, o gasto do governo precisa crescer sempre um pouco menos que a arrecadação. A proporção padrão é de 100 para 70. Isso significa que, se o ganho do governo crescer R$ 100 bilhões de um ano para o outro, o gasto poderá subir R$ 70 bilhões. Com isso, em tese, sobram recursos para reduzir a dívida pública federal, o que também é um objetivo do NAF.

Acontece que, enquanto o conjunto de despesas cresce menos, os gastos com educação e saúde crescem no mesmo ritmo da arrecadação. Isso porque a Constituição determina que 15% do arrecadado anualmente pelo governo seja destinado à saúde e outros 18% para a educação, independentemente do que diz o arcabouço.

Desse descompasso de ritmos de crescimento advém o dilema entre arcabouço e pisos. No longo prazo, as rubricas de saúde e educação responderão por uma fatia cada vez maior do orçamento, comprimindo os demais gastos. Em última instância, as duas áreas comprometerão tudo o que o governo pode gastar, deixando o Estado sem recursos para outras áreas também essenciais, como o pagamento de benefícios sociais.

Uma solução seria enquadrar os pisos constitucionais no arcabouço. Essa medida enfrenta resistências do campo popular.

Disputa aberta

A economista Nathalie Beghin, membro do conselho gestor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), confirma a incompatibilidade entre o arcabouço e os pisos no longo prazo. Segundo ela, o problema foi criado pelo NAF, o qual ela chamou de “regra fiscal leonina”. A especialista defende que não há cabimento discutir investir menos em saúde e educação sabendo do déficit histórico do Brasil nas duas áreas.

Entretanto, ela admite que essa discussão já está posta. Lamenta, inclusive, que dentro do próprio governo aventem a possibilidade de mudança nos pisos. “Os pisos da saúde e da educação são conquistas dos trabalhadores de muito tempo. E agora um governo progressista – é verdade que numa ampla aliança – fala em retirar esse enorme ganho.”

Recentemente, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, afirmou que iria discutir com o presidente Lula planos para redução de gastos do governo. Após a entrevista, o Partido dos Trabalhadores (PT) lançou uma nota reafirmando seu compromisso com os pisos.

Questão de tempo

economista Juliane Furno, professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), também reforçou a incompatibilidade entre o arcabouço e os pisos. Segundo ela, no médio prazo, um debate político terá que definir o caminho a ser seguido antes da situação extrema ocorrer.

Furno ressalta que o governo precisará tomar uma decisão: “uma opção é mexer nos pisos, mas a outra pode ser flexibilizar o arcabouço”, ressaltou. Ela, pessoalmente, é favorável a mudar o NAF. Reconhece, porém, que manter os pisos da educação e saúde inalterados não será uma tarefa fácil. “Haverá um conflito. A decisão vai depender da força dos movimentos sociais, da pressão da sociedade.”

O Tesouro Nacional já estimou que saúde e educação poderão perder até R$ 504 bilhões entre 2025 e 2033 caso os pisos para as áreas sejam alterados. Em compensação, isso abriria espaço para investimento de até R$ 131 bilhões em outras áreas.

Revisão do NAF

O economista Pedro Faria concorda que o tempo é fator essencial nesta disputa. Ele lembrou que o NAF foi estabelecido numa lei ordinária pois o governo já tinha consciência de que, em algum momento no futuro, teria que rediscuti-lo.

Para Faria, a ideia inicial era deixar que essa rediscussão ocorresse depois da eleição de 2026. Até lá, o NAF funcionaria estabilizando e até reduzindo a dívida pública sem que os pisos da educação e saúde fossem afetados. No pleito, a necessidade de revisão do NAF seria debatida com os eleitores. O projeto vitorioso na eleição definiria o futuro da regra fiscal.

Faria disse que o debate sobre o NAF surgiu antes do que o governo gostaria. Com o arcabouço recém-aprovado, qualquer rediscussão sobre ele gera críticas de opositores.

A favor do planejamento

Mauricio Weiss, economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), disse que essa desconfiança segura o arcabouço e aumenta a pressão sobre os pisos – o que ele acha ruim.

Para o especialista, o governo errou ao desenhar o NAF vinculando gastos à arrecadação. Deveria ter traçado um plano de investimentos em educação e saúde, protegendo os setores.

“Eu não gosto de regra baseada na arrecadação. Num momento de crise econômica, quando o Estado perde arrecadação, o gasto tem que cair também. Eu prefiro regra de planejamento de gastos”, afirmou.

Edição: Martina Medina

Fonte: Brasil de Fato