Médico especialista em aborto legal afirma que há barreiras para vítimas de estupro que engravidam. Para ele, PL deseja enterrar essa possibilidade “da forma mais perversa possível”
Embora a Câmara dos Deputados tenha retirado do regime de urgência a tramitação do Projeto de Lei 1.904/2024, que equipara o aborto legal em idade gestacional acima de 22 semanas, inclusive, em casos de estupro, ao crime de homicídio simples, o chamado PL do Estupro, segue em pauta na sociedade, com forte reação contrária.
Neste fim de semana, dias 22 e 23 de junho, o movimento de mulheres foi às ruas em pelo menos três capitais: Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, pedindo que o PL saia definitivamente da discussão no Congresso Nacional.
O movimento de mulheres também chamou atenção nos atos para que o aborto não seja penalizado em nenhuma circunstância, defendendo o direito constitucional da mulher sobre sua saúde e vida.
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Segundo pesquisa DataFolha realizada entre os dias 17 e 19 de junho, dois em cada três brasileiros, ou 66%, são contra o projeto. Católicos (68%) e evangélicos (54%) são majoritariamente contra qualquer tipo de pena para mulheres que precisam realizar o aborto após 22 semanas de gestação. No entanto, a base conservadora de deputados insiste para que seja votado no segundo semestre, após o recesso do Congresso.
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Para o médico Cristião Rosas, especialista em ginecologia e obstetrícia e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir, o PL está na contramão de todas normas e políticas internacionais sobre o tema, e irá dificultar o acesso a um serviço que já encontra muitas barreiras para ocorrer e vai piorar com leis que encurralam tanto as vítimas de estupro como os profissionais da saúde que atendem essas meninas e mulheres. O Portal CUT ouviu o médico que conta como esse projeto é danoso às mulheres.
CUT: Cristião, como você, que trabalha com aborto legal e atende meninas e mulheres vítimas de estupro há tantos anos, recebeu e avaliou a notícia desse PL?
Cristião Rosas: Fiquei perplexo. Não queria imaginar que o Parlamento de um país como o Brasil, ocidental, democrático, com Estado laico, pudesse propor uma legislação que retroagisse a quase um século. A lei que descriminaliza o aborto no Brasil é de 1940, ou seja, de 84 anos atrás. E até hoje são muitas as dificuldades de acesso, as incompreensões, os estigmas em cima dessas mulheres. Uma minoria delas consegue, de fato, acessar os direitos de um aborto legal, com dignidade, com privacidade, seguro, pelo SUS. Na sociedade brasileira, um tema de tamanha complexidade, que é interferido por tantas variáveis sociais, médicas, psíquicas, de acesso, burocráticas, de resistências, ser pautada em caráter de urgência é acinte. Qual urgência? Essa lei não é cumprida há 84 anos e estão querendo criar mais barreiras? Só pessoas perversas podem propor algo com essa virulência, com nenhuma empatia com a dor de uma menina estuprada, de uma menina grávida.
CUT: Quais são as barreiras que as vítimas encontram para fazer o aborto legal?
Cristião Rosas: É a minoria de cidades brasileiras que possuem serviço de aborto legal. São cerca de 200 municípios com o serviço, diante dos mais de 5 mil municípios que existem no país. Essas meninas ficam batendo de porta em porta, recebendo informações inverídicas, enfrentando barreiras de objetores, informações falsas sobre seus direitos reprodutivos. Quando ela encontra uma referência que possa dar guarida ao seu direito legal de 84 anos, a proposta do Estado brasileiro é, ou essa menina continuar com a gravidez forçada decorrente de um estupro, ou se for fazer o aborto, cumprir uma pena de 20 anos, igualada a um homicídio.
Eu não consigo entender a mente, o coração, o espírito, alma de pessoas que agem com tamanha falta de bom senso. Mas, eu vejo também que a sociedade brasileira entendeu a forma draconiana como está sendo tocado esse Projeto de Lei, e está respondendo a altura.
CUT: O pedido de urgência na tramitação do PL veio em reação à decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, derrubando a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que orienta os médicos a não fazerem o procedimento de assistolia fetal após 22 semanas de gestação. Como o senhor avaliou essa resolução do (CFM)?
Cristão Rosas: Entre os médicos, estamos vendo uma reação contrária muito forte. Eu só posso imaginar que é a implantação de uma proposta ideológica vinculada a um pensamento religioso, fundamentalista, que não percebe todas as dimensões do tema que eles estão tentando normatizar. Qualquer regulamentação do Conselho Federal de Medicina tem que ser respaldada, em primeiro lugar, pela ciência; tem que vir com robustas evidências científicas. E evidentemente a resolução do CFM está longe do que diz a ciência atualmente, as recomendações das mais importantes diretrizes, das mais importantes universidades e associações médicas de ginecologia e obstetrícia, e principalmente da Organização Mundial da Saúde.
Têm questões ali que não se sustentam, não só do ponto de vista cientifico, como também traz uma grande confusão, mostrando o descolamento do atual Conselho Federal de Medicina com relação aos conceitos médicos relacionados ao aborto. Não tem cabimento falar em tempo de gestação e peso fetal em casos de aborto legal.
CUT: O CFM, portanto, propôs uma normatização que vai contra os procedimentos médicos indicados?
Cristião Rosas: O aborto legal é um aborto induzido artificialmente, intencionalmente. Tem uma causa intencional para acabar com a gravidez. Esse limite de 22 semanas, peso fetal, é o conceito de aborto espontâneo, não de aborto induzido. Portanto, a resolução do CFM é uma distorção do conceito médico para impor aos médicos brasileiros uma restrição a um procedimento médico (assistolia fetal) reconhecido cientificamente e que traz segurança para o aborto legal.
CUT: Essa norma, assim como projeto de lei, estimula que a vítima de estupro leve a gravidez adiante?
Cristião Rosas: O tema é complexo. Ele estimula a “hiperatrofiar” o estigma em relação ao aborto. No mundo inteiro esse é um tema complexo. Mas, é preciso entender que existem consequências trágicas medicamente e socialmente falando, como é o caso de vítimas de estupro que ficam grávidas. É preciso estabelecer valores sobre como resolver a questão para essa mulher que sofreu algo tão violento e corre risco de morte. É preciso abrandar essa fúria em termos sociais, de vulnerabilidade, institucionais, de direito à saúde contra essa menina já nascida. Os próprios tratados internacionais já decidiram que forçar uma mulher a levar uma gravidez decorrente de um estupro adiante é tratamento cruel e degradante. Para mim, é muito doloroso ver o meu Conselho de Medicina, o meu tribunal de ética, propor tortura às meninas. E esse projeto de lei vai no mesmo caminho.
CUT: Do ponto de médico e legal, não devemos falar em tempo gestacional para uma vítima de estupro realize o aborto legal. Em geral, essas mulheres e meninas conseguem fazer o procedimento?
Cristião Rosas: Há estudos mostrando que pelo menos 200 municípios haviam feito pelo menos um aborto legal no país. Isso representa 3,5% de todos os municípios brasileiros. Quase todas essas cidades tinham mais de 100 mil habitantes, com bom nível de desenvolvimento. O que acontece com as mulheres que estão em pequenos municípios, na zona rural? Há serviços que só acolhem até 12 semanas – embora a lei não limite por tempo gestacional. Há outros que realizam o procedimento até 22 semanas, e são raríssimos aqueles que fazem acima de 22 semanas. Então, ela fica batendo de porta em porta até encontrar, e as semanas vão passando.
CUT: As meninas, crianças e adolescentes vítimas de estupro e que engravidam, conseguem chegar a uma unidade de saúde de referência até as 22 semanas de gestão?
Cristião Rosas: 75% das vítimas de estupro no Brasil são caracterizados como estupro de vulneráveis, que são estupros em menores de 14 anos ou quando a mulher, mesmo maior de idade, não tem condições de se defender conscientemente, ou porque está sob efeito de uma anestesia, foi drogada, alcoolizada, ou é uma pessoa com deficiência. Seis em 10 são em meninas abaixo de 13 anos. No Brasil, todas essas barreiras fazem com que as gestações decorrentes de estupro aumentem em tempo gestacional se comparadas com países mais desenvolvidos. No mundo, 1% dos abortos é feito acima de 22 semanas. No Reino Unido, 0,1% dos abortos ocorreram após a 20ª semana de gravidez. Nós somos um ponto fora da curva por todas as barreiras colocadas para as crianças, as adolescentes e as mulheres em situação de vulnerabilidade.
CUT: Você pode nos explicar a lida que essas meninas passam para chegarem à unidade de saúde com a gestação avançada?
Cristião Rosas: Vamos pensar uma dessas 60 meninas, em 100, que são as vítimas de estupro com menos de 13 anos. Ela não teve educação sexual e reprodução na escola, não conhece anatomia, e tem dificuldade de reconhecer sinais de gravidez. Ou muitas vezes elas nem sabem que aquele abuso é crime. Elas vão perceber o volume no abdômen com a mãe, com uma tia ou uma prima mais velha num banho, numa roupa suja, ou com a professora da escola quando ela já está com no mínimo 18 semanas. Eu já vi a situação da mãe chegar com a filha no serviço de saúde porque a menina está com o volume da barriga aumentado e o médico pediu exame de verminose. Ela volta um mês depois com o exame negativo, alguém no posto começa a considerar que ela está grávida, aí é que vão pedir um ultrassom, que vai demorar para fazer no SUS, e só aí já se passaram dois meses. Essa menina que está com 18 semanas, volta com 22, 24 semanas de gravidez. E aí começa o abandono dessa mãe batendo de porta em porta. São barreiras criadas pelos próprios sistemas de saúde. Com toda a desigualdade social, um país com tão poucos serviços de saúde, nós criamos mais barreiras, mais estigmas. A gravidez prolongada de meninas vai prolongar o risco de vida delas. O risco de morte de gestão numa menina abaixo de 15 anos é cinco vezes maior do que em uma mulher acima de 20 anos.
CUT: Quais seriam as consequências da restrição do aborto legal até a 22ª semana de gravidez para as crianças e mulheres brasileiras?
Cristião Rosas: Os limites de tempo gestacional nas leis de um determinado país podem forçar mulheres a procurar abortos clandestinos ou legais fora desse país, o que leva ao aumento de custos, de mortalidade e das iniquidades sociais. Esses limites são geralmente impostos como uma estratégia dos grupos anti-direitos para restringir o acesso ao aborto legal.
No entanto, esses limites não são baseados no conhecimento científico e no avanço tecnológico relacionado ao cuidado de crianças e mulheres que buscam um aborto induzido. Com os avanços do conhecimento na área da saúde, é possível garantir um cuidado ao aborto induzido mais seguro do que o parto, mesmo depois da 22ª semana da gravidez.
CUT: Dados do próprio governo apontam que no ano de 2020, 17.500 meninas menores de 14 anos tornaram-se mães no Brasil, demonstrando a magnitude do estupro de vulnerável.
Cristião Rosas: Esses dados referem-se à gravidez infantil e na adolescência precoce. A OMS define a adolescência precoce como o período de crescimento e desenvolvimento humano que acontece entre os 10 e os 14 anos. Nesse período inicial da adolescência (ou fase final da infância), os riscos de complicações maternas são significativamente maiores, já que se intensificam as alterações físicas, psíquicas e hormonais que a levarão gradativamente à plenitude reprodutiva.
A literatura da saúde reconhece que na infância e na puberdade a menina ainda não concluiu seu processo de maturidade cognitiva, psicossocial e biológica. Diante de uma gravidez, essa condição de imaturidade biológica da adolescência precoce traz como consequência uma maior taxa de complicações obstétricas, tais como anemia, pré-eclâmpsia e eclâmpsia, diabetes gestacional, parto prematuro e partos distócicos.
As taxas de mortalidade materna entre as gestantes menores do que 14 anos chegam a ser cinco vezes maiores do que entre as gestantes entre 20 e 24 anos. Os recém-nascidos de adolescentes menores do que 14 anos ainda apresentam maiores taxas de baixo peso ao nascer, maior frequência de complicações neonatais e uma maior mortalidade infantil. Ou seja, a gravidez infantil também é arriscada para a “criança que está por vir”.
FONTE: CUT