Minha granada, minha vida, por Jorge Alexandre Neves

É mais do que óbvio que nos anos de 2020 e 2021 era inviável para qualquer categoria laboral fazer manifestações.

Li na grande mídia que sindicatos de servidores públicos federais estão convocando uma grande “marcha nacional” em Brasília para o próximo dia 17 deste mês. Confesso considerar estupefaciente esta e  outras iniciativas que estão pipocando entre servidores públicos federais. Quanto ativismo, não? Que contraste com o que se viu durante o governo de Bolsonaro! Por que será?

          É mais do que óbvio que nos anos de 2020 e 2021 era inviável para qualquer categoria laboral fazer manifestações. A situação pandêmica não permitia. Contudo, iniciamos o ano de 2022 com condições muito favoráveis para manifestações de servidores públicos, a saber:

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  • Já fazia um ano que tinha sido iniciada a vacinação e, assim, todos já estávamos vacinados.
  • Todas as categorias laborais tinham acabado de sentir um baque muito forte no poder aquisitivo, visto que a inflação do ano anterior havia superado os 10%, como pode ser visto no gráfico abaixo.
  • A esmagadora maioria das categorias laborais de servidores públicos vinha de três anos de humilhações e exposições a agressões morais por parte de um governo cujo ministro da economia nos havia explicitamente tratado como inimigo e dito que havia conseguido colocar uma granada em nosso bolso. No caso dos servidores docentes e técnico-administrativos das IFES, então, as agressões e constrangimentos foram ainda maiores, pois vários ministros da educação tinham feito questão de nos agredir e humilhar. Adicionalmente, era o quarto ano de um governo que não nos havia dado qualquer reposição salarial
  • Durante a pandemia, algumas áreas do serviço público, em particular do setor de saúde, haviam conquistado a confiança e o apoio da população, pois tinham provado sua relevância.
  • Tramitava no Congresso Nacional uma proposta legislativa de reforma administrativa que, entre outros pontos, ameaçava acabar com a estabilidade no serviço público federal.

          Todavia, apesar do contexto favorável, as categorias laborais do serviço público federal, em geral, não promoveram qualquer tipo de mobilização, preferindo ficar inerte diante de um governo de estilo fascista, que agredia diuturnamente a democracia e suas instituições. Por que tanto imobilismo?

Depois de um processo eleitoral extremamente conturbado, a democracia venceu e foi eleito o Presidente Lula, para o exercício de seu terceiro mandato. De imediato, depois de muita negociação com um Congresso Nacional bastante hostil, o novo governo conseguiu aprovar uma reposição linear de 9% para todas as categorias laborais de servidores públicos federais civis, depois de anos sem qualquer reposição. Desde então, as restrições orçamentárias impostas por uma regra fiscal bastante dura – porém, mais flexível do que aquela que existia antes, mas que nunca foi aplicada realmente – criam fortes barreiras para a concessão de reposições salariais que permitam a recomposição das perdas nos proventos da maior parte das categorias de servidores públicos federais.

Além das dificuldades geradas pelas restrições fiscais, o terceiro governo Lula, que, apesar de seu caráter de frente ampla, tem um perfil progressista, está hoje sob forte cerco da mídia, do Congresso Nacional e da extrema direita em nível mundial (vide o que Musk está fazendo), bem como tem que lidar com forças armadas tomadas pelo golpismo. A sobrevivência da democracia brasileira continua, pois, sob forte ameaça.

Apesar dessa conjuntura, várias categorias laborais de servidores públicos têm decidido não apenas fazer manifestações para pressionar o governo federal, bem como têm declarado greves. Quanto menor o poder de barganha da categoria, mais provável está sendo que ela deflagre greves. Como o poder de agenda das carreiras universitárias docentes e técnico-administrativas é muito baixo, as greves já começam a pipocar.

Na universidade na qual trabalho, por exemplo, a categoria técnico-administrativa já iniciou seu movimento paredista há algumas semanas. Todavia, é uma greve “cabeça de bacalhau”. Onde estão os grevistas? Onde? Não conseguimos vê-los! Não há servidores e servidoras nos campi fazendo panfletagem, buscando esclarecer a comunidade universitária em geral sobre o movimento. Não vi nenhuma passeata dentro ou fora dos campi. Pergunto a estudantes com quem converso se sabem a razão pela qual está ocorrendo a greve. A resposta é não! E não sabem porque os grevistas simplesmente não têm feito nada para informá-los, pois ninguém sabe onde estão. Daí tratar-se de uma greve de “cabeça de bacalhau”. Repito a pergunta: onde diabos estão os grevistas? Onde?

Considero que não há uma única mísera explicação minimamente aceitável para que categorias de servidores públicos federais partam para movimentos grevistas neste momento, quando ficaram totalmente inertes em 2022, assistindo passivamente a democracia brasileira correr sérios riscos, bem como o Estado que os emprega ser destruído por dentro. Devem ter gostado do programa “minha granada, minha vida” promovido pelo governo anterior. Sinceramente, na minha opinião, o que nós, servidores públicos federais do poder executivo estamos mostrando com esse tipo de atitude não passa de covardia, falta de compromisso com a democracia e total ausência de espírito público! Somos patógenos oportunistas que estão se aproveitando de um governo que está fragilizado diante de inimigos dos mais perigosos (para todos nós, por sinal) para ver se conseguimos tirar uma lasquinha. Ao mesmo tempo, nunca nos mobilizamos para buscar direitos universais junto com a classe trabalhadora, como fizeram as categorias profissionais europeias. Já pensaram se tivéssemos nossos filhos e filhas em escolas públicas e não pagássemos esses escorchantes seguros de saúde? Teríamos um extraordinário ganho de renda! Mas nunca agimos dessa forma, pois nosso caráter fortemente estamental nos faz sempre buscar a distinção. Para homenagear a nós todos, proponho assistirmos um curtíssimo vídeo de uma fala do saudoso Prof. Mílton Santos, que pode ser visto aqui:

P.S.: Enquanto eu terminava de escrever este texto, fui informado de que a categoria docente da minha universidade decidiu entrar em greve. Não contem comigo!

Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.  Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

FONTE: JORNAL GGN