A Mulher Fora do Mercado Formal de Trabalho, por Jorge Alexandre Neves

Ouvi a economista dizer que a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho se deve a diferenças de nível de qualificação

por Jorge Alexandre Neves

As incongruências do chamado “neoliberalismo progressista” são fatais. Elas tornam inexorável o fracasso político dessa aliança entre valores progressistas – em particular, de caráter identitário – e o chamado “mercado”. Curiosamente, ao contrário dos EUA, onde essa aliança tem como principal locus um partido político, o Partido Democrata, no Brasil ela está mais bem representada na mídia tradicional, tendo as chamadas Organizações Globo como sua principal representante.

No último dia 08 deste mês, dia internacional da mulher, o podcast O Assunto, da Globo, convidou uma economista do IBRE-FGV para falar sobre desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho brasileiro, principalmente sobre a razão pela qual as mulheres estão sub-representadas no mercado de trabalho formal (o título desta coluna repete aquele do referido episódio do podcast). O episódio foi pródigo em mostrar as incongruências insuperáveis do “neoliberalismo progressista”. Provavelmente, a produção do programa e a apresentadora – que naquele episódio foi Júlia Duailibi – queriam ter entrevistado uma profissional que conseguisse fundamentar uma análise que mostrasse que a desigualdade entre  homens e mulheres no mercado de trabalho se deve, pelo menos em boa parte, a discriminações derivadas do próprio mercado. O problema é que convidaram uma economista (obviamente, para falar naquele dia sobre tal assunto, era indispensável que fosse uma mulher) neoliberal. Deu ruim… Deu muito ruim!

Eu ouvi o episódio naquele mesmo dia. A análise da convidada já não começou nada bem, mas o ápice do constrangimento se deu quando – já no final, parecendo bastante impaciente – a apresentadora pediu à entrevistada que a ajudasse a “desconstruir o argumento falacioso de que o mercado paga menos para a mulher porque, afinal de contas, a mulher fica grávida e aí tem a licença maternidade etc…” e, em seguida, colocou um áudio do ex-ministro bolsonarista Adolfo Sachsida, no qual ele dizia que empregadores preferem contratar homens a mulheres porque são atores racionais, que entendem que o fato de mulheres engravidarem as faz menos competitivas do que os homens, por causa do custo de oportunidade. Não sei se tive mais pena da entrevistada ou da apresentadora. Pense no constrangimento que foi! Para resumir, a entrevistada basicamente disse que os rendimentos do trabalho são uma função da produtividade (Jesus!, de imediato, lembrei-me do artigo clássico de Albert Hirschman sobre as tolices da economia ortodoxa chamado “Contra a Parcimônia” ou Against Parsimony, no original em inglês) e, muito pior (pois trata-se de um erro factual) terminou por dizer que a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho se deve a diferenças de nível de qualificação. Que desastre!

O referido episódio do podcast revelou-se, assim, um caso exemplar das incongruências do “neoliberalismo progressista”. Claramente, queriam que a entrevistada fizesse uma análise crítica do mercado de trabalho para dar fundamento à visão que têm sobre problemas relacionados a gênero (tanto que a apresentadora chegou à beira da deselegância com a entrevistada ao pedir-lhe para “desconstruir o argumento falacioso…”, não dando a ela a opção de ser quem indicaria ser ou não o argumento falacioso), mas convidaram alguém que não tinha os elementos teóricos necessários para fazê-lo. E por que, então, a convidaram? Porque quando se trata de questões econômicas, sempre convidam analistas de mercado ou alguém de uma instituição acadêmica que funciona como think tank deste.

Haveria várias formas de dar uma resposta satisfatória à questão posta pela apresentadora. Todavia, seria preciso partir de uma posição heterodoxa sobre o funcionamento do mercado de trabalho, ter uma visão mais realista sobre ele, começando pelo fato de que não se trata de um mercado eficiente (no caso brasileiro, a ineficiência do mercado de trabalho foi brilhantemente demonstrada pelo economista Lauro Ramos em seu livro intitulado “A Distribuição de Rendimentos no Brasil, 1976/8”), seja por suas profundas falhas, visão de muitos economistas institucionalistas e afins, seja por ele ser visto como socialmente inserido, concepção mais comum entre cientistas sociais. O fato é que não faltam demonstrações científicas – algumas que, inclusive, ganharam o Prêmio Nobel de Economia – de que o mercado de trabalho é particularmente ineficiente e cheio de situações que passam muito distante do que se poderia esperar sob o pressuposto da eficiência (o que faz com que a associação entre produtividade de um trabalhador e seu rendimento seja bastante precária). Assim, o mercado de trabalho é pródigo em situações nas quais ocorrem “contratos implícitos”, credencialismos, rotulagens (screening) e discriminações.

É importante ressaltar que, já há décadas, as mulheres entram no mercado de trabalho bem mais qualificadas do que os homens, em termos de escolarização (o tipo mais relevante de “capital humano”, este um conceito da própria economia ortodoxa). Portanto, a afirmação da entrevistada de que, em parte, as desigualdades de gênero no mercado de trabalho se devem a assimetrias (de nível, palavra utilizada por ela) de qualificação não faz o menor sentido. Deve-se ressaltar que os níveis mais elevados de escolaridade das mulheres as tornam mais, digamos, “treináveis” do que os homens. Portanto, o custo de oportunidade de requalificação das mulheres no trabalho (on the job training) é, indiscutivelmente, menor do que o dos homens, mesmo considerando que estes têm, em média, mais tempo de experiência laboral (para a requalificação, a escolaridade é muito mais relevante do que o tempo de trabalho anterior). Quanto ao custo da gravidez de mulheres no mercado formal, economistas neoliberais parecem esquecer que ele é pago, fundamentalmente, pelo sistema previdenciário. Portanto, não há esse custo direto tão alto. O que haveria, sim, seria um custo de oportunidade relacionado à mulher se ausentar quatro meses do trabalho, o que levaria a uma depreciação do treinamento recebido. Todavia, a maior “treinabilidade” das mulheres supera, em muito, esse custo de oportunidade.

As incongruências do “neoliberalismo progressista” vão continuar presentes na nossa mídia corporativa. A sua superação tornaria necessário lidar com o cerne do problema, qual seja, a desigualdade, a grande questão nacional, da qual essa mesma mídia tradicional tenta fugir. Não tem saída! A nossa sorte é que, no Brasil, as forças progressistas de esquerda continuam tendo na questão das desigualdades socioeconômicas uma bandeira política fundamental. Assim sendo, é possível, no lado esquerdo do espectro político, lidar com os problemas de gênero – assim como os de raça – de forma mais eficaz, em busca de superação.

Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.  Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Fonte: Jornal GGN