País ocupa a 2ª posição no ranking com mais casos de diagnóstico de burnout. Além do comércio, trabalhadores de Educação e Saúde têm jornadas com apenas uma folga por semana. Indignação, alavancada nas redes, leva o debate pela redução do trabalho ao Congresso
Por Ana Carolina Ferreiral, no Projeto Colabora
Às 8h da manhã do dia 13 de outubro de 2022, Geovana Lopes, 27 anos, acordou para começar mais um dia desafiante no emprego. Formada em Gastronomia, a cozinheira iniciou a jornada às 14h num restaurante do município de Maringá, no Paraná, onde trabalhava na escala 6×1 (uma folga a cada seis dias de trabalho). Ao chegar lá, percebeu que o dono do estabelecimento, sem querer, desligara a geladeira dias antes, e a comida estava estragada. O alvoroço causado pela situação era apenas mais um aditivo no caos da cozinha, que mais tarde explodiria como uma panela de pressão bloqueada pela válvula de segurança.
E quem mais tarde sofreria os danos, seria Geovana. Naquela semana, o restaurante chegou ao maior déficit de empregados; ela trabalhava na cozinha principal sozinha, onde antes atuavam cinco pessoas. “Depois do estresse pela situação da comida podre, o funcionário da massaria, que fica em outra área do restaurante, entregou as massas com uma qualidade diferente. Isso desagradou o dono do restaurante, que também estava na cozinha principal para soltar o serviço. Então ele começou a fazer assédio moral comigo até eu ter uma crise de pânico”, conta.
Ser chamada de “retardada”, “idiota” e ser mandada a “calar a boca” aos gritos era uma prática hostil já recorrente do superior com Geovana, mas, naquele dia, a tensão a levou a um colapso. O contexto e o local eram agravantes: o assédio acontecia em meio uma cozinha industrial com objetos perfuro-cortantes, bocas de fogão e fornos. “Enquanto eu tentava fazer os pratos, a pessoa se dirigia a mim de maneira ríspida, colocando a culpa em mim. Eu tremia e chorava muito; e a cozinha tinha paredes de vidro, então os clientes conseguiam ver a gente. Já estava em pânico e a pessoa ainda me mandava abaixar para ninguém me ver”, relata Geovana, ao lembrar da ocasião com dificuldade. Ela explica que seu cérebro “sofreu um apagão” sobre o que foi efetivamente dito — mas lembra como se sentiu.
Após duas horas e meia, ela pegou suas coisas, aos prantos, e foi embora. Deu entrada no pronto-socorro do hospital que fica em frente ao restaurante. Aquele foi o último dia em que trabalhou no estabelecimento, mas não o último em que sentiu o desgaste de sua integridade física e mental. “Naquele dia, fui parar no hospital com sinais de psicose, frequência cardíaca a 150 bpm. Hoje tenho síndrome do estresse pós-traumático, ansiedade generalizada, depressão e descobri que sou bipolar”. O período enquanto cozinheira do restaurante foi de um ano, mas as consequências ainda são sentidas atualmente: hoje comemora pequenos avanços na saúde mental, mas ainda não consegue — e não pode — retornar a um ritmo de trabalho tão frenético.
O caso não é isolado para a história de Geovana ou para quem trabalha na cozinha de restaurantes. O Brasil ocupa a 2° posição no ranking de países com mais casos diagnosticados de burnout, segundo dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANMT). A Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional é caracterizada pelo estresse no ambiente de trabalho e pode apresentar sintomas como cansaço excessivo, insônia, dificuldades de concentração, alterações no apetite, baixa autoestima, irritabilidade, entre outros. Se não for devidamente tratada, pode evoluir para problemas de saúde mais graves, como depressão, ansiedade e problemas cardiovasculares — como no caso de Geovanna, avisada pelos médicos da Unimed que se cumprisse a demanda de dobrar o horário no dia seguinte, enfartaria.
Apesar do distúrbio emocional ser causado pelo trabalho excessivo e desgastante, o psicólogo Bruno Chapadeiro, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da Rede de Estudos do Trabalho, alerta que a responsabilização acaba sempre no empregado. “É o trabalho que está adoecendo as pessoas, é onde a gente passa a maior parte do nosso tempo de vida. Então como ele não pode ser um determinante de saúde importante? Geralmente a saúde no trabalho é tratada como dever do indivíduo através da mudança comportamental, como melhor alimentação e rotina de exercícios físicos — o que é necessário para um estilo de vida saudável, mas não age na causa do problema”, argumenta.
Movimentos sociais no Brasil buscam mudar esse cenário, exigindo mudanças no mercado de trabalho para uma vida mais digna. É o caso do Vida Além do Trabalho (VAT), que pede o fim da escala 6×1 em petição online com mais de 1 milhão de assinaturas. Iniciado por Rick Azevedo — jovem de 30 anos, tocantinense e morador do Rio de Janeiro — que desabafava nas redes sociais sobre o cotidiano com longas jornadas. O movimento viralizou nas plataformas e, como resultado da mobilização, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) começou a recolher assinaturas para apresentação de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para reduzir a jornada de trabalho e acabar com a escala 6×1. Já foi aprovada a realização de uma audiência pública conjunta das as comissões de Legislação Participativa e de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial, ainda sem data, para discutir a proposta.
Nas redes sociais, onde trata ativamente sobre a causa do movimento VAT, Rick comenta um desabafo em vídeo de Geovana, em que ela aparece com cartelas de medicações, contando como é sua rotina após trabalhar no restaurante — como relatado anteriormente nesta reportagem — e explicando as consequências após ir ao hospital. “Eu estou meio sem palavras. Gente, as pessoas estão assim, e eu quase cheguei nessa situação devido à escala 6×1, excesso de trabalho e carga horária exaustiva. E a indústria farmacêutica está romantizando tomar essa quantidade de remédios. Ou seja, eles nos adoecem e depois a gente tem que pagar caríssimo para continuar vivo. Acorde, se revolte, porque isto não é normal”, diz Rick sobre o vídeo de Geovana.
O post nos perfis do VAT e de Rick reúne relatos dos seguidores do movimento, que se identificaram com a história da cozinheira. Se pesquisas como a da Associação Nacional de Medicina do Trabalho apresentam levantamentos sobre o Burnout no Brasil, publicações diárias como as realizadas por Rick aproximam internautas das histórias por trás dos números. Só nesta publicação, são quase mil comentários pessoais, a maioria sobre a escala 6×1 e a relação com a saúde mental. Lojas de shopping, farmácias, telemarketing e supermercados são as principais áreas de trabalho citadas. “Trabalhei em telemarketing num setor que, vez ou outra, alguém morria na ligação. Tenho apenas 21 anos e não consigo mais trabalhar, todo dia tomo remédios que eu acho que não servem de nada. Todos os dias estou triste, vejo, escuto e sinto cheiro de coisas. […] Isso tudo por conta de um trabalho que dentro da escola 6×1 me adoeceu”, diz um dos comentários.
Para o psicólogo e pesquisador Bruno Chapadeiro, é possível traçar distintos perfis de adoecimento da classe trabalhadora, além de diferentes sofrimentos psíquicos como consequência do modelo de trabalho exaustivo. “Em certas áreas de atuação, há maior incidência de psicopatologias como o burnout. Com base em minhas pesquisas sobre a síndrome, foi possível verificar que, desde os anos 1990, ela acomete muito mais pessoas do ramo do cuidado, como trabalhadores da saúde e da educação. Aqueles que precisam dedicar uma certa carga mental e afetiva com as pessoas que se relacionam no cotidiano”, conta Bruno.
Saúde e educação foram enquadrados pelo pesquisador para a Síndrome do Esgotamento Profissional, mas outras profissões são fragilizadas pela organização laboral, como jornalistas, para um sofrimento mental; bancários, para depressão e ansiedade; motoristas de transportes públicos e seguranças para estresse pós-trauma (por estarem mais sujeitos a acidentes e assaltos); e coletores de lixo para alcoolismo. “Nesse último caso, as explicações que essas pessoas dão para o uso do álcool tem uma dimensão social. Eles dizem que o álcool ajuda a dar conta da jornada de trabalho, porque a indução eufórica no sistema nervoso central permite que eles fiquem mais ligados”, explica Chapadeiro.
O estudo identificou também outras razões. “Quando fiz uma pesquisa com coletores de lixo do interior de São Paulo, um deles falava que no fim do expediente eles iam beber, porque sentiam que o álcool ajudava a lidar com as pessoas nos transportes públicos ao voltar para casa, devido ao odor. O álcool era socialmente aceito pelos colegas e supervisores naquele contexto — o próprio chefe lhes dava uma garrafa de cachaça para eles irem tomando no caminhão, durante o exercício do trabalho, para sentirem menos o mau cheiro e serem mais produtivos”, conta o pesquisador.
Bruno Chapadeiro também pôde perceber a fadiga mental de caixas de um supermercado, também no interior de São Paulo. O acompanhamento dos funcionários revelou um cotidiano difícil: a esteira que leva os alimentos do cliente à pessoa do caixa não funcionava e eles pediram para os clientes posicionarem as compras mais próximas. O dono do supermercado, como punição pela solicitação dos funcionários aos clientes, retirou os assentos dos caixas. “Passaram a trabalhar em pé, o que causou problemas circulatórios. Depois, passaram a improvisar com banquinhos de plásticos e colocar sacolas plásticas embaixo, para poder dar altura. Ou seja, além de ser exigida a polivalência do trabalhador com equipes cada vez menores e mais volume de trabalho, as condições em que se atua são prejudiciais à saúde”.
Rick Azevedo iniciou o movimento VAT desabafando sobre sua própria rotina: em 2023, era balconista de uma farmácia e trabalhava na escala 6×1. Em vídeo publicado no TikTok, desabafou sobre como se sentia esgotado com a carga horária e escala intensa de trabalho. “Quero saber quando é que nós, da classe trabalhadora, iremos fazer uma revolução nesse país relacionada à escala 6×1. É uma escravidão moderna. Se a gente não se revoltar, colocar a boca no mundo, meter o pé na porta, as coisas não vão mudar”.
A frustração foi o resultado acumulado de doze anos trabalhando na escala, em curso de inglês, supermercado, lanchonete, lojas e farmácia. O vídeo já teve quase um milhão de visualizações e gerou identificação em boa parte dos espectadores — tanto que ficou marcado como um prelúdio do movimento que preza a vida fora do trabalho. “A jornada de trabalho no Brasil frequentemente ultrapassa os limites razoáveis, com a escala 6×1 sendo uma das principais causas de exaustão física e mental dos trabalhadores. A carga horária abusiva imposta por essa escala de trabalho afeta negativamente a qualidade de vida dos empregados, comprometendo sua saúde, bem-estar e relações familiares”, diz trecho da petição pelo fim da escala.
A relação com os seguidores foi de suma importância para a criação do movimento VAT. Milena Quimelo, farmacêutica e criadora de conteúdo de humor com quase 90 mil seguidores, foi essa relação que a fez guardar seus vídeos com atuações engraçadas ou informações sobre remédios para dar lugar a um apelo recebido por inúmeras pessoas. Em vídeo coproduzido com o também influenciador Diego Capela, conhecido como o “Guri da Farmácia”, Milena e o colega de profissão falam sobre a saúde mental de quem atua na área. “São dezenas de mensagens que invadem nosso direct diariamente, como um pedido de socorro, um desabafo. Por isso estamos aqui, para tentar dar voz à quem precisa. Mensagens que causam revolta, indignação e medo que possam surgir consequências irreversíveis”. O vídeo de Milena e Diego – postado em abril e republicado por Rick, que também trabalhou em drogaria – termina com um apelo para que as pessoas procurem ajuda profissional.
Em um dos relatos recebidos após a postagem do vídeo, um dos seguidores de Milena disse que passava por muito sofrimento e cogitava acertar a própria mão com um martelo, para não ir trabalhar. “Quando as pessoas nos veem falando da profissão, se sentem à vontade em desabafar. Mudam os personagens, os locais, o gênero, mas as histórias são praticamente as mesmas. A gente tenta compartilhar a nossa vivência de um lado mais bem-humorado, mas o trabalho na farmácia não é somente isso”, afirma Milena. Segundo a farmacêutica, poucas pessoas pensam no lado negativo do emprego. “Há um glamour exagerado de quem trabalha nesses setores, mas não é bem assim. Estamos falando de um mercado que emprega muito, mas será que ninguém chegou a se perguntar o porquê? Será que é porque ele realmente cresce a todo momento, ou será que é porque as pessoas desistem? Pedem para sair? Ficam doentes?”, questiona.
Mas, apesar dos depoimentos sensíveis que recebe, a vivência de Milena é diferente . Ela afirma amar o trabalho em drogaria, ter uma boa relação com os colegas, e sentir-se bem quanto à saúde mental e feliz com o dia a dia no trabalho. Exceto pela escala 6×1: por isso, apoia o Vida Além do Trabalho. “Eu gostaria muito de ter tempo com a minha família, de poder visitar minha mãe. Nessa escala, as pessoas acham que a folga é aos domingos, mas normalmente é no meio da semana. A minha esposa, por exemplo, trabalha de segunda a sexta; sábado, domingo e nos feriados, ela está em casa, mas eu não. A gente raramente consegue se encontrar a não ser num único domingo que eu tenho no mês, que é o direito da escala”, comenta.
Apesar de movimentos como o VAT serem importantes na luta do trabalhador por uma vida mais digna, o pesquisador e psicólogo Bruno Chapadeiro se preocupa com a mudança na jornada sem discutir outros aspectos. “Sou favorável à extinção da escala 6×1, mas, se o trabalho é feito por entrega e metas, as pessoas vão continuar tendo a mesma carga de trabalho para dar conta em menos tempo. O que a gente realmente precisa discutir é a organização do trabalho”, argumenta.
O pesquisador também lembra que o tempo livre, com a redução de jornada, poderia ser ocupado com outros serviços. “Com os salários cada vez mais insuficientes, o trabalhador vai acabar utilizando esse dia para mais trabalho. Então o descanso, na verdade, vai ser a última coisa a ser pensada, porque a organização do trabalho de hoje envolve essa precarização de baixos salários, do tempo cada vez mais escasso, de formas contratuais precárias, dessa jornada comprimida e intensificada. A forma como estamos trabalhando tem nos adoecido”, afirma Chapadeiro.
E os impactos desse adoecimento prevalecem por tempo indeterminado, como na história da cozinheira Geovana. Estudo publicado em 2021 – realizado em Belo Horizonte sobre a saúde mental de trabalhadores em restaurantes – aponta para uma correlação significativa entre o ambiente de trabalho e a prevalência de Transtornos Mentais Comuns (TMC), como depressão e ansiedade. Os dados revelaram uma prevalência de 10,3% de sintomas de depressão — um número que se aproxima da taxa nacional (15,5%).
Essa medida inclui todos os casos, tanto atuais quanto passados, e é usada para indicar o risco ou a probabilidade de uma pessoa desenvolver depressão em algum ponto durante sua vida. Além disso, o estudo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) destacou que 100% dos trabalhadores diagnosticados com transtorno de ansiedade também apresentavam depressão, e que as mulheres eram mais propensas a sofrer desses transtornos. Os fatores de risco incluíam esforço físico intenso, longas jornadas de trabalho, e pressão por prazos.
Geovana Lopes é um exemplo vivo das estatísticas reveladas pelo estudo. Sua experiência extrema no ambiente de trabalho a levou a um colapso, resultando em um diagnóstico de múltiplos transtornos mentais — que permanecem em sua vida mesmo quase dois anos depois. “Não conheço um cozinheiro que não tenha ansiedade ou depressão. Não conheço nenhum que não tome remédios devido à saúde mental. Hoje, eu trabalho como freelancer duas vezes por semana. Mas, apesar de ter saído da pior fase, a qualquer minuto eu posso voltar a entrar na depressão. Eu preciso me adaptar e voltar ao mercado de trabalho, de um jeito que eu não precise ser internada”, finaliza.
Fonte: Outras Mídias