O governo do ninguém neoliberal e a era dos estelionatários, por Fábio de Oliveira Ribeiro

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Hannah Arendt estava certa ao dizer que o pior governo seria o governo de ninguém. Agora que o ninguém neoliberal governo o mundo – digo isso pensando nas palavras de Pedro Serranohttps://twitter.com/RCasara/status/1384582589751644171?s=20 – a resistência local sempre depende do governo de alguém. O problema: as pessoas são mortais, o ninguém é uma ideia em metamorfose.

Essa qualidade de se transformar em algo diferente conservando suas características ou de transformar uma instituição até que ela seja esvaziada e deixe de ser aquilo que era (caso do nosso sistema constitucional, e do Judiciário) dá ao ninguém neoliberal uma grande vantagem.

A história prova que é possível mobilizar as pessoas para morrer por uma causa. Mas isso não pode ser feito sem que os interesses pessoais sejam conectados ao interesse geral em torno do qual elas foram mobilizadas. A dispersão causada pelo ninguém é seu calcanhar de Aquiles.

Num mundo perfeito governado pelo ninguém neoliberal, as máquinas produzirão tudo e o trabalho manual será limitado aos técnicos que projetam e fazem manutenção das máquinas. O excedente populacional crescente será uma ameaça permanente à civilização governada por ninguém.

Terra Incognita: era assim que os romanos se referiam aos territórios além de suas fronteiras. A ameaça potencial dos bárbaros, daqueles homens que os romanos não conheciam e que poderiam invadir e devastar suas províncias periféricas, obrigou Roma a se expandir até se exaurir.

Como o governo mundial do ninguém neoliberal lidará com a “terra incognita” que ele está criando dentro dos próprios países desenvolvidos? Essa é uma pergunta importante. Nós sabemos que ideologia que construiu os bantustões na Africa do Sul é compatível com o neoliberalismo.

Em pleno século XXI, norte-americanos e europeus aceitarão pacificamente ser “marcados e separados” como os negros da África do Sul foram no início do século XX? O aumento da volatilidade social no centro do governo de ninguém estimulará maior estabilidade nos países periféricos?

Esqueci de transcrever o fragmento de Hannah Arendt no início. Mas isso não quer dizer que ele não possa desempenhar alguma função ao ser postado no final.

O fato de nenhum indivíduo – nenhum déspota, per se – poder ser identificado nesse governo mundial não mudaria de forma alguma o seu caráter despótico. O governo burocrático, o governo anônimo do burocrata, não é menos despótico porque ‘ninguém’ o exerce. Ao contrário, é ainda mais assustador porque não se pode dirigir a palavra a esse ‘ninguém’ nem reivindicar o que quer que seja.”(A promessa da política, Difel, Rio de Janeiro, 2008, p. 149)

A pensadora alemã radicada nos EUA considera o governo de ninguém “…assustador porque não se pode dirigir a palavra a esse ‘ninguém’ nem reivindicar o que quer que seja.” A realidade em que Hannah Arendt escreveu isso deixou de existir há muito tempo.

O ninguém neoliberal conseguiu proporcionar a todos o poder de dirigir a palavra a todos sem que isso possa produzir qualquer efeito prático. Ninguém está lendo ou escutando o que é dito na internet, exceto os algoritmos que transformam nossas manifestações em dinheiro.

Bárbaro: era assim que os romanos chamavam aqueles homens ameaçadores que viviam na “terra incognita” falando uma língua esquisita e sem gramática (esquisita e sem gramática aos olhos dos romanos). Quantos de nós aprendemos a falar a linguagem dos algoritmos?

A língua que nós falamos têm gramática, mas ela é incapaz de descrever tudo o que está ocorrendo nesse exato momento no mundo do governo do ninguém neoliberal, em que os fluxos financeiros também são regulados de maneira automatizada. Essa automatização é ou não um problema?

Nos EUA e na Europa já existe um excedente financeiro que é muitas vezes maior do que as economias reais do planeta inteiro por muitos anos. As dívidas estatais acumuladas pelos países ricos também são estratosféricas, impagáveis em alguns casos.

Como é bela a automação: o máximo de racionalidade com o mínimo de custo produz lucros financeiros exorbitantes desorganizando permanentemente as economias reais dos próprios países centrais. Mas os analistas continuam dando os mesmos conselhos: invista em dólar ou em euro.

Chegamos ao ponto em que os ricos podem encher suas piscinas com dinheiro. Mas eles nunca conseguirão transformar papel em água e em todos os lugares a água potável está se esgotando. A crise da água… e os algoritmos começam a correr para criar a nova bolha financeira líquida.

No fim e ao cabo, o governo do ninguém neoliberal criará um imenso problema para alguém: para aqueles que querem desfrutar suas riquezas em paz sem ser soterrados por lixo, contaminados por agrotóxicos e sem ingerir partículas de microplástico nos alimentos.

Então aparece o “foguetão” que levará os milionários desumanizados para Marte. Lá eles finalmente se sentirão seguros, bem distantes da “terra incognita” cheia de bárbaros que o governo do ninguém neoliberal criou nos países desenvolvidos. Lá ninguém precisará governar ninguém?

Dizem que Elon Musk implantou um microchip no seu próprio cérebro para ser mais livre governado pelos algoritmos que construíram esse admirável mundo velho. Talvez seja verdade. A grande mentira: será muito fácil transportar florestas, rios, lagos e oceanos para outro planeta.

Ok. Eu desisto de seguir em frente. O neoliberalismo, o governo de ninguém, a automatização economicamente tóxica das operações financeiras, o foguetão do Elon Musk, a conquista de Marte e até a Lava Jato… tudo isso tem a estrutura de um grande estelionato, crime cuja principal característica é a exploração da credulidade ou desinformação da vítima induzida pelo ardil que foi empregado pelo delinquente. Bem-vindo à era dos estelionatários.Não por acaso eles são ferozmente apoiados pelos pastores evangélicos especialistas em enriquecer ludibriando os fiéis.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

FONTE:GGN
FOTO:REPRODUÇÃO