Mentiras sobre a covid custam vidas – temos o dever de suprimi-las

Quando governos fracassam em banir inverdades evidentes que comprometem seus cidadãos, estão negligenciando seu dever principal

Por que valorizamos mais as mentiras do que as vidas? Sabemos que certas mentiras matam pessoas. Algumas pessoas que acreditam que tais afirmações como “o coronavírus não existe”, “não é o vírus que adoece as pessoas, mas sim o 5G”, ou “vacinas são usadas para injetar um microchip em nós” não tomam as devidas precauções ou se recusam a serem vacinadas, então contraem e espalham o vírus. Ainda assim, permitimos que essas mentiras se espalhem.

Temos o direito de nos expressarmos livremente. Também temos o direito à vida. Quando a desinformação maliciosa – alegações que são tanto falsas quanto mentirosas – podem se espalhar sem restrições, esses dois valores colidem. Um deles tem que ceder, e o que escolhemos sacrificar é a vida humana. Tratamos a liberdade de expressão como algo sagrado, mas a vida é negociável. Quando governos falham em banir mentiras evidentes que comprometem as vidas das pessoas, eu acredito que tomaram a decisão errada.

Qualquer controle pelo governo sobre o que falamos é perigoso, especialmente quando o governo, como o nosso, possui tendências autoritárias. Mas a ausência de controle também é perigosa. Na teoria, reconhecemos que existem limites necessários à liberdade de expressão: quase todo mundo concorda que não devíamos ser livres para gritar “perigo!” em um cinema lotado, porque é provável que as pessoas se pisoteiem até a morte. Bem, as pessoas estão sendo pisoteadas por essas mentiras. Então o limite foi ultrapassado?

As pessoas que exigem absoluta liberdade de expressão frequentemente falam sobre “o mercado de ideias”. Mas em um mercado, você não pode falar inverdades sobre o seu produto. Você não pode fingir ser algo que não é. Você não pode vender ações com tendências falsas. Você é legalmente proibido de fazer dinheiro mentindo para seus clientes. Em outras palavras, no mercado há limites para a liberdade de expressão. Então onde, no mercado de ideias, estão os padrões de troca? Quem regula os pesos e medidas? Quem checa as tendências? Nós protegemos o dinheiro das mentiras mais cuidadosamente do que protegemos a vida humana.

Eu acredito que espalhar somente as inverdades mais perigosas, como as mencionadas no primeiro parágrafo, deveria ser proibido. Um possível modelo é a Lei do Câncer, que proíbe pessoas de fazerem propaganda de curas ou tratamentos contra o câncer. Uma proibição contra as piores mentiras sobre a covid deveria ter tempo limitado, em vigor por talvez seis meses. Eu gostaria de ver um comitê de especialistas, similar ao Grupo de Conselhos Científicos para Emergências (SAGE), identificando afirmações que apresentem um perigo genuíno à vida e propondo uma proibição temporária ao Parlamento.

Ao passo que essa medida seria aplicada somente nos casos mais extremos, deveríamos estar bem mais alertas aos perigos da desinformação no geral. Mesmo declarando que os especialistas mencionados não estão deliberadamente espalhando informações falsas, o novo site Anti-Vírus www.covidfaq.co pode ajudar a equilibrar o jogo contra pessoas como Allison Pearson, Peter Hitchens e Sunetra Gupta, que avançaram publicamente com suas afirmações enganosas sobre a pandemia.

Mas como essas afirmações se tornaram tão proeminentes? Conquistaram força somente porque receberam uma enorme plataforma na mídia, particularmente o Telegraph, o Mail e – acima de todos – o jornal de bobagens não científicas, o Spectator. Seu veículo mais influente é a BBC. A BBC tem o instinto infalível de julgar erroneamente onde se encontram debates científicos. Se emociona com negacionistas, barulhentos mal informados. Como argumenta Stephen Barlow, a negação da ciência está destruindo nossas sociedades e a sobrevivência da vida na Terra. Ainda assim, é tratada pela mídia como uma forma de entretenimento. Quanto maior o idiota, maior tempo no ar.

Todos menos um dos jornalistas mencionados no site Anti-Vírus também possuem um longo histórico de menosprezar e, em alguns casos, negar, o colapso climático. Peter Hitchens, por exemplo, desconsiderou não somente o aquecimento global feito pelo homem, como também o próprio efeito estufa. Hoje, a negação climática desapareceu no país, talvez porque a BBC finalmente parou de tratar a mudança climática como uma questão controversa, e o Canal 4 não faz mais filmes afirmando que a ciência climática é uma farsa. As emissoras mantiveram essa desinformação viva, assim como a BBC, fornecendo uma plataforma para afirmações enganosas esse mês, sustentando inverdades sobre a pandemia.

No entanto, as ironias são abundantes. Um dos fundadores do admirável site Anti-Vírus é Sam Bowman, membro sênior do Instituto Adam Smith (ASI). Esse é um grupo de lobby obscuramente financiado com um longo histórico de afirmar inverdades científicas que frequentemente parecem se alinhar com a ideologia ou interesses de seus financiadores. Por exemplo, menosprezou os perigos do cigarro, e argumentou contra as proibições aos cigarros em pubs e contra pacotes simples para os cigarros. Em 2013, o Observer revelou que estava recebendo dinheiro de empresas de tabaco. O próprio Bowman, ecoando argumentos feitos pela indústria do tabaco, pediu pela “suspensão de todas as regulações na UE sobre os pacotes de cigarros” com base na noção das “liberdades civis”. Ele também protestou contra o financiamento público de mensagens de saúde pública sobre os perigos do cigarro.

Algumas das alegações passadas do ASI sobre ciência climática – como declarações de que o planeta está “fracassando em aquecer” e que a ciência climática está se tornando “completamente descreditada” – são tão idiotas quanto as alegações sobre a pandemia que Bowman expôs. O Manifesto Neoliberal do ASI, publicado em 2019, mantém, entre outras vozes, que “menos pessoas estão desnutridas do que nunca”. Na realidade, a desnutrição vem subindo desde 2014. Se Bowman fala sério sobre ser um defensor da ciência, talvez ele possa averiguar algumas das inverdades espalhadas pela sua própria organização.

Grupos de lobby financiados por plutocratas e corporações são responsáveis por grande parte da desinformação que satura a vida pública. O lançamento da Declaração de Great Barrington, por exemplo, que promove a imunidade de rebanho por meio da infecção em massa com a ajuda de informações descreditadas, foi realizado pelo Instituto Estadunidense de Pesquisa Econômica. Esse Instituto recebeu dinheiro da Fundação Charles Koch, e se posiciona amplamente contra medidas de proteção ao meio-ambiente.

Não é surpresa que temos um mentiroso inveterado como primeiro-ministro: esse governo emergiu de uma cultura de desinformação direitista, armada por thinktanks e grupos de lobby. Afirmações falsas são grandes negócios: pessoas e organizações ricas vão pagar alto para outros as espalharem. Algumas delas são usadas pela BBC para “equilibrar” debates com cientistas climáticos nos quais mentirosos profissionais foram pagos por empresas de combustíveis fóssil.

Nos últimos 30 anos, eu assisti esse modelo de negócios se espalhar como um vírus pela vida pública. Talvez seja fútil pedir que um governo de mentirosos regule mentiras. Mas enquanto teóricos conspiracionistas ganharem um bom dinheiro para fazer afirmações falsas, deveríamos ao menos nomear os padrões que uma sociedade boa estabeleceria, mesmo se não pudermos confiar no governo atual para colocá-las em prática.

FONTE: CARTA MAIOR
FOTO: REPRODUÇÃO